Existem por aí diversos autores difíceis de encarar. Nietzsche, que para alguns parece acessível, é um deles. Weber, pela enormidade de sua tarefa, outro. Mas há dois do ramo da psicologia que poucos se dão a tarefa de abordar frente a frente. Um deles, como é óbvio, é Freud. Outro, Jung. Não nos esqueçamos de Lacan, mas aqui o problema é outro.
Fiquemos em Jung. "Jung, O Mapa da Alma - Uma Introdução", de Murray Stein, já nos diz a que veio pelo título. Dividido em 9 capítulos, mais a introdução, o livrinho - 212 páginas - promete esboçar (quase) todos os principais conceitos do universo junguiano sem com isso simplificar a tarefa de sua compreensão. Passando pela consciência do ego, complexos, teoria da libido, instintos, arquétipos, inconsciente coletivo, persona e sombra, animus e anima, o si-mesmo, individuação e sincronicidade, o livro dedica em média 20 páginas para cada conceito ou conjunto de conceitos. Ficam as perguntas: em que medida o universo conceitual junguiano pode realmente interessar a quem não pretende se dedicar ao estudo da psicanálise? E, ainda mais: o que pode retirar de útil quem, em última instância, tem uma leve curiosidade sobre o assunto mas não pretende por isso entrar na obra de Jung?
A indicação do livro veio, no meu caso, pelas mãos de minha ex-terapeuta, Mercedes. À época, parecia que somente pela via da razão eu conseguiria "entrar" de forma efetiva em meu tratamento, dado que eu relutava em tomar remédios e, ainda mais, em ceder à terapia em detrimento da aparente interminável expressão de dilemas intelectuais que só de passagem poderiam interferir no processo psicanalítico em si. Comprei o livro, meio a contragosto, e ao lê-lo logo o abandonei. Não nutria eu à época o menor interesse por mais teorias, mais do que todas
as que haviam fornido minha formação de jornalista, estudioso de filosofia e de ciência política (sem contar o teatro, a que eu já vinha me dedicando).
Aconteceu que somente há muito pouco tempo - poucas semanas - resolvi encarar o livrinho. Eu, que sempre preferia ler OS AUTORES e não OS COMENTADORES, precisei admitir que não tinha como encarar a obra completa de Jung, ainda mais para meus objetivos de então.
Stein começa atraindo a atenção do leitor à tarefa investigadora de Jung. Chama Jung de um explorador do mar de mistério (Mare Ignotum) que é o inconsciente, em tarefa similar à dos astronautas que em 1961 - quando do falecimento de Jung - começavam a explorar o espaço. A imagem pode parecer fraca ou mesmo batida, mas Stein argumenta, salientando que até então pouco se sabia dos motivos que conduziam a alma humana à sua definição, e que Jung, por meio da assim chamada - por ele - psicologia analítica, propôs-se em seu tempo a explorar cientificamente esse outro mare ignotum, mar desconhecido de todos, especialistas ou não, e que levava a todos em trajetórias às vezes erráticas, a maioria das vezes mal resolvidas, rumo ao seu termo. Haveria alguma forma de entender as trajetórias humanas sem para isso recorrer a teorias inconsistentes ou, falando de outra forma, pouco científicas? O enfrentamento desse desafio teria cabido aos fundadores da psicologia, a Freud e Jung, especialmente. Até hoje muitos atribuem a Freud - especialmente a ele - a retirada do véu de racionalidade que até então era atribuído ao ser humano, como que para disfarçar os impulsos que levavam a humanidade à loucura, a impulsos mal-resolvidos, pouco explicados e - pior - tratados de forma insuficiente (basta reparar em todas as menções de peças contemporâneas a eles, psicanalistas, e especialmente a Freud). Jung, nesse prisma, não é contudo tão levado em conta por educadores, sociólogos ou afins. Haveria algo de mágico, de pouco científico, nas abordagens junguianas da alma humana. Eu mesmo zombava dos "brinquedinhos" (figuras como anões e outras) que
povoavam os consultórios junguianos. Mas deixemos isso de lado.
Não que Jung comece do zero, como se antes o conhecimento que a humanidade tem do homem fosse uma tábula rasa. Não: Stein já no começo salienta a dívida que Jung sempre disse ter de Goethe, Kant, Schopenhauer, Carus (?), Hartmann e Nietzsche; mas, mais ainda, Stein ressalta que Jung preferia se dispor do lado dos chamados gnósticos antigos e dos alquimistas medievais (página 15, da introdução), embora seu filósofo preferido fosse Kant e a influência da dialética hegeliana fosse evidente. Algo muito estranho, tudo isso. Mas serve para localizar o intuito de Jung e indicar que, embora Jung se dispusesse a traçar o chamado mapa da alma do ser humano, seria a pessoa mesma quem deveria descobrir o seu próprio, o preciso mapa de sua alma (página 16, da introdução). O próprio Stein localiza seu interesse na obra de Jung, que, segundo ele, não é "compulsivamente coerente".
O trabalho de Stein começa pela consciência do ego. O que seria isso? Uma das estruturas psíquicas fundamentais do ser humano (ego, sombra, anima, animus e si-mesmo), o ego é o centro do campo da consciência, (... ou seja ...) o ego é o sujeito de todos os atos conscientes da pessoa". Ok, então é simples. Então, o ego é a consciência? Não, o ego é o centro da consciência, em escritos que vão do começo ao fim da obra de Jung. Ocorre que o maior interesse de Jung e dos predecessores e sucessores NÃO É a consciência, mas ao contrário o inconsciente. Já a consciência, ou seja, "o estado de conhecimento e entendimento de eventos externos e internos" precede o ego, que se converte em seu centro. O ego seria para Jung o campo que, "compondo o centro crítico da consciência, determina que conteúdos permanecem no domínio (dela) e quais se
retiram, pouco a pouco, para o inconsciente". Ou seja, é como se o ego fosse um filtro, no interior da consciência, que desempenharia um papel fundamental em relação àquilo que iria posteriormente se encaminhar ao inconsciente. Imagine um pensamento reprimido, por exemplo. Ele seria um conteúdo que o ego não aceita e que é transportado ao inconsciente. Apesar disso, desse papel de transportar certos conteúdos, o ego seria moralmente neutro, no entender de Jung.
Pode-se perceber então que o "ego" de Jung não tem nada a ver com o ego como é normalmente entendido ("aquele cara tem um ego do tamanho de um bonde"). Em poucas palavras, o ego separa o indivíduo de outras criaturas conscientes, assim como de outros seres humanos. Percebe-se então que o "ego" é um termo técnico. Como são técnicos todos os outros termos, já citados de passagem: sombra, anima, animus, si-mesmo, sincronicidade, etc.
Voltando ao ego. Pode-se imaginar que o ego seja um conceito simples de depreender (sendo aliás o mais básico de todos). Mas não é esse o caso. Um exemplo: o ego, funcionando como ativador da energia psíquica do indivíduo, funciona de forma a mover grandes somas de conteúdo consciente, sim, mas pode ser influenciado por conteúdos estímulos psíquicos internos e
ambientais externos, que são por sua vez transformados em emoção (como no caso de filmes, por exemplo). Em suma, o ego, sendo entendido dessa forma, pode lembrar o inconsciente. Mas
não, é o ego atuando, então é o centro da consciência atuando. O ego, mesmo sendo o mais básico dos conceitos junguianos, não é necessariamente simples. Como não são simples os outros conceitos.
Em que medida eles ajudam a entender o ser humano, com todas suas pulsões e contradições? Diria eu que na medida em que a filosofia possa parecer para alguns insuficiente nesse afã e em que por outro lado não se queira apelar à religião. Resta dizer que a obra completa de Jung acaba de ser relançada pela Vozes (2 mil reais a obra toda). Jung - O Mapa da Alma pode significar a diferença entre permanecer ignorando por completo esse universo e se resolver a optar por complicar a vida - para descomplicá-la. Meu caso.
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3 comentários:
Rodrigo, fiquei muito feliz com seu interesse em resenhar esse livro. Você sabe de todos os motivos... Obrigada e parabéns! Abraço forte.
Mercedes
Gostei bastante deste livro. Foi útil também. Descobri algumas coisinhas...
Interessante. Um ano após o primeiro comentário. Não me parece sincronicidade, mas não deixa de ser curioso.
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