segunda-feira

Luís Capucho - Cinema Orly

Vocês podem estranhar que eu faça duas resenhas do mesmo livro.

Não é isso. É que a "resenha" anterior é mais bem um apanhado de passagens de minha vida e de impressões sobre o Luís do que uma simples resenha.

Mas esta será breve.

Cinema Orly traça as andanças do Luís pelo cinema do mesmo nome, no Rio, que virou, não se sabe quando, um lugar de encontro de homens que fazem sexo indiscriminadamente entre si. Homens hetero, homo, viados, travestis, voyeurs, todo tipo de homem, que vai lá para - oficialmente - assistir filmes pornô (sempre hetero).

O lugar é um antro em que nenhum espaço escapa ileso. A narrativa de Luís é crua, mas os palavrões que surgem não são em nenhum ponto gratuitos. São muitos palavrões, muitas expressões fortes, muitas cenas que ficam presas à mente de tão forte que são. Não é um livro para amadores.

Eu não li - ainda - Henry Miller, por isso não posso comparar Cinema Orly com nada do gênero. Foi meu primeiro livro mais, digamos, pesado. Mesmo agora leio o livro da Bruna Surfistinha e, embora haja algumas semelhanças, são, venhamos e convenhamos, literariamente, de mundo completamente opostos. O livro da Bruna é uma espécie de relato de autoajuda. Pois no final a Bruna se "salva". Em Cinema Orly, nada se salva. Muito menos o Orly.

O Luís escreveu o livro depois de se safar de um coma ao qual chegou pelas vidas da Aids. Tem um quê de livro de memórias. Mas o livro não é apenas sacanagem. O Luís mostra no livro como sempre saiu em busca do amor, e como este estava invariavelmente ligado a sexo do mais baixo calibre. Tanto a trajetória do Luís foi essa que ele, lá pelos 2/3 do livro, narra momentos em que namorou caras que frequentavam o Orly, e como tudo acabou num emaranhado de sensações dúbias. Percebe-se que o Luís, em todo momento, mostra-se honesto com o seu desejo e como esse desejo se confunde com a promiscuidade. Sim, pois - o Lúcio me lembrou - o livro é de promiscuidade entre homens. Mas eu respondi ao Lúcio que somos livres. E somos, até e principalmente para isso.

Cinema Orly abriu minha sensibilidade a entender essa nossa trajetória de seres sexuados. O que queremos? Queremos mesmo? Queremos ou desejamos, distinguindo - como Lacan distinguiu - o querer (algo mais superficial) do desejar (algo mais profundo, do fundo, do âmago)?

Hoje, quando escrevo, é dia de Parada Gay, e não irei à Paulista. Não precisa. Aqui com esta resenha faço mais pela causa do que horas andando por aí defendendo os direitos dos outros fazerem o que querem.

Aviso, como na resenha anterior, que Cinema Orly está esgotado, mas que os sortudos podem encomendá-lo do próprio Luís, em lcapucho@bol.com.br. São 30 reais tirando a taxa do correio. Falem que leram minha resenha. Não ganho nada com isso, apenas a satisfação.

sexta-feira

Luís Capucho - Cinema Orly


Cinema Orly, de Luís Capucho

Retomo minhas resenhas, após um baque de ordem pessoal.

(escrito originalmente em junho de 2012)

Se você não suporta ou não quer ler sobre relatos sexualmente crus de qualquer espécie, páre de ler por aqui.

Cinema Orly, de Luís Capucho, é um livro que não passa batido. Leia: "Há muito não vou ao Orly assistir a um filme pornô e pagar um boquete". Essa é apenas a primeira frase. E o livro não ameniza. São 142 páginas de um livrinho tamanho bolso que vão do escatológico ao realmente surpreendente. Mas não imagine que o livro são apenas relatos pornográficos sem qualquer pudor ou ausência absoluta de lirismo. Não. O livro avança tanto em um terreno por mim desconhecido que leva-nos a lugares insuspeitados. Muito bem ilustrado por César Lobo, Cinema Orly faz jus à fama de Capucho como um autor-compositor-escritor-cantor cult, gravado por Cássia Eller e talvez - o cantor está pensando - por Ney Matogrosso. Outros cantores que já gravaram Capucho são por mim desconhecidos, por isso seria mero chute citá-los aqui. Mas o que quero dizer é que Capucho não está sozinho, que ele não simplesmente uma ovelha desgarrada do rebanho. Passa-nos pela mente: que rebanho? Capucho faz parte de outro rebanho, que não pára de crescer. O da homossexualidade sem vergonha. Sem vergonha não por ser desavergonhada, mas simplesmente que não sente vergonha de simplesmente ser.

A leitura de Cinema Orly levou-me àquela fatídica noite em que assisti Querelle, de Fassbinder. Magnificamente interpretado por Brad Davis, que ficou marcado na história do cinema pelo papel - antes ele havia filmado o magistral Expresso da Meia-Noite -, Querelle abriu-me acesso a um mundo desconhecido, o da prostituição masculina sem pudor nem vergonha. Cinema Orly vai no mesmo caminho mas numa viagem que passa singelamente por um pequeno cinema, o Cinema Orly, que ainda existe no Rio de Janeiro e que, segundo o Luís, continua decadente. Confesso: não sei que decadência!

Eu, que não sou homossexual, passei a ver o mundo homossexual de outra forma a partir de Cinema Orly. Agora, posto sem vergonha imagens homoeróticas no facebook, simplesmente alheio àquilo que possam outros dizer. Entendi esse mundo. Ou ao menos aceitei sua relevância. Não preciso mais ir à Parada Gay para "provar" meu avanço. Posso simplesmente aceitá-la e defendê-la sem necessariamente fazer parte dela.

Digo-lhes como cheguei a Cinema Orly. Eu havia ido assistir a um show de um amigo na Casa das Caldeiras, em São Paulo. Cheguei cedo como de costume. Vi um livrinho laranja aparentemente inofensivo - pelo menos sempre encarei assim e até então qualquer livro. Li essa primeira frase acima transcrita. Fiquei enojado, pensei "meu, que livro forte, nunca imaginaria isso dele". Deixei o exemplar como se deixa um tomate podre na bancada. Passei aos cds de compositores-cantores que eu não conhecia. Não comprei nenhum.

Passamos ao show. Após a banda do meu amigo - num show, que disse a ele, não me causou qualquer impressão -, permaneci isolado assistindo gente ir e vir do palco. Todos tocando bem, confesso, mas não causando nada em mim. De repente, entra no palco à minha direita um ser franzino acompanhado de uma guitarrista já, digamos, de maior idade do que a média do público. Começa a cantar. Digo para mim, "é isso, isso é que é bom". Capucho empunhava o violão com alguma dificuldade e tocava claramente "mal" - ou, como eu prefiro dizer, de um jeito sujo, nada limpinho como as classes média e pobre em geral adoram. Continuei assistindo e gostando. O show durou pouco e havia poucas pessoas à frente dele. Qualquer um diria que o pessoal não conseguiu gostar, não entraram no clima, ou que acharam simplesmente uma merda. Tudo bem. Capucho saiu, outros shows continuaram e eu consegui dançar e pular como havia muito tempo não conseguia. Uma beleza.

À saída, pedi ao cara dos cds que me mostrasse um cd do Capucho. Havia dois, comprei - com um cheque - Lua Singela, talvez o mais conhecido dele. Daí perguntei por algo mais do Capucho. Ele me mostrou o livro. Eu disse, "mas, meu, esse livro é pesado, é ele mesmo quem escreveu?". Sim, o cara me confirmou. Eu tava sem grana e ainda chocado, por isso não comprei.

Vi e encontrei o Luís no facebook. Começamos a papear, viramos amigos pelo facebook, e já comecei a imaginar formas de utilizar músicas dele em peças que eu venha a encenar. Especialmente Lua Singela, a música. Falamos sobre grana, ficamos por isso. Tive de viajar logo em seguida ao Rio, e lhe disse se não queria se encontrar comigo. Ele topou. Nos vimos no Santos Dumont, ele acompanhado do namorado Pedro. O Luís é franzino e fala como canta, com certa dificuldade, pausadamente e de forma tal que eu só consigo ver em sua fala exatamente o que parece pensar. Ficamos ambos encantados. Parecia que nós conhecíamos há anos. Luís, vim saber na hora, é aidético e entrou em coma alguns anos atrás. Ainda convive com sérias sequelas. Daí seu jeito de tocar e de falar. Ele nomeia esse seu jeito de falar, no Cinema Orly, como "do homem elefante". Não posso dizer que não tenha alguma razão. Realmente falar como ele fala é estranho e, para mim, uma conquista. Só conheço alguém mais a falar de forma a causar impressão similar, o nosso querido Charles Bukowski. Mas não nos dispersemos.

Como provar a vocês que Cinema Orly é algo mais do que pura sacanagem? Penso que dizendo-lhes que foi a partir de então que entendi o quanto a busca do amor pode ser simplesmente e também a busca pela pura sacanagem. Simplesmente assim. O livro, acreditem-me, é bem povoado de trechos que ficam entre o meramente podre e supremamente lírico. Mas isso vocês mesmos terão de descobrir.

Vamos à parte difícil. Cinema Orly está esgotado e Capucho passa por problemas de ordem de direito autoral com a editora. Então, a única forma de comprá-lo é mandar um pedido ao Luís e depositando em sua conta. Ele cobra 50 reais mais as taxas de envio e entrega (10 reais) (dados atualizados, julho de 2015), e se dispõe a mandar a quem quiser. Eis o email do Luís: lcapucho@bol.com.br. Aviso: ele tem poucos exemplares. Alguns de vocês poderão ter notado que eu não falei praticamente nada do livro. Não precisa. Sinceramente.

PS: Logo faço uma resenha do livro, que este texto virou uma indicação, forte mas uma indicação. Até mais.