terça-feira

Luiz Roberto Galizia - Os processos criativos de Robert Wilson

Vez ou outra aparecem nos jornais menções a esse que ora é dito simplesmente como "badalado" ora como fundamental para entender o teatro no século XX: o norte-americano Robert "Bob" Wilson. "Os processos criativos de Robert Wilson", de
Luiz Roberto Galizia, é a tentativa desse ecano já falecido
em tentar decifrar a esfinge. Tudo começa com uma apresentação do também recentemente falecido Alberto Guzik, que remete-nos aos dilemas do autor, estudioso e prático do teatro, e dentre outras coisas fundador do lendário Teatro do Ornitorrinco. Sabemos então que Galizia não era mais um iniciante quando meteu-se a estudar a obra do americano. Que já havia passado por Berkeley e quase desistira do doutorado quando - em reconstituição feita pelo Guzik - decidiu-se por assumir o desafio de tentar entender o colosso. Conheceu o próprio, participou como figurante de algumas de suas peças,
pesquisou insistentemente e analisou diversas criações de
Wilson, no formato teatro, vídeo, dança, laboratórios, etc.,
em suma, avançou por dentro e por fora da trajetória do
americano até 1986 - data da publicação da obra, em inglês.
Sabendo-se o quanto escasseiam obras com tamanha
perspectiva, o livro assume então importância ainda maior -
ainda mais para nós, brasileiros (procurem-se obras do gênero lá fora e só sobra uma, de Stefan Brecht, The Theatre of Visions, citado pelo próprio Galizia).
Mas, afinal de contas, por que Bob Wilson é - ou parece ser - tão impressionante? O próprio Galizia conta. Indo desde sua desistência em seguir carreira em administração, passando por sua repentina fuga a Paris para estudar pintura, onde assistiu à nata do teatro e da ópera de então, assim como às artes plásticas em geral, Galizia mostra como Wilson entrou no teatro e na arte por vias no mínimo inusitadas - formando-se em arquitetura de interiores, happenings e cursos de expressão e sensibilização corporal para crianças retardadas. Trabalhando já então com cenografia, vídeo e dança, Wilson não deixou por isso de dedicar esforços à arquitetura, de vez em quando destacando-se por projetar e atuar em performances e happenings. Mas e daí, diria o desavisado? Hoje é até comum acompanhar essas erráticas trajetórias dos artistas plásticos em geral. Daí que com toda essa bagagem - e o apoio de uma instituição (a Byrd Hoffman, no Soho) que lhe dava sinal verde para experimentos os mais diversos -, Wilson iria se dedicar a experimentos em espetáculos que lhe renderam, ao menos então, diversas críticas ácidas de menosprezo. O que dizer, por exemplo, de um espetáculo de duas horas em que pessoas sentavam-se e levantavam-se de cadeiras, que se alinhavam em direção ao público, atravessavam a sala e simplesmente repetiam tudo uma e outra vez, sem aparentemente haver motivação alguma para isso? Isso só para citar por cima um dos experimentos do Wilson de então. Tudo ficaria por isso mesmo se Wilson não radicalizasse e conseguisse viabilizar espetáculos que se estendiam dias inteiros ou mesmo semanas, sem parar, e realizar oficinas cujo objetivo era simplesmente "estimular seus membros a tornarem-se mais conscientes de seus próprios corpos e das maneiras pelas quais estes interagem com os outros corpos que os rodeiam" (página XXVI, da introdução). As peças resultantes, de dimensões gigantescas, envolvendo atores, dançarinos e performers profissionais assim como pessoas sem formação em especial nessas áreas, iriam deixar um rastro indelével, tornando-se referência nos mais variados âmbitos. Tudo pareceria ainda pouco para o não-especialista, não fosse a incursão de Wilson nos mais variados campos de pesquisa, muitos estranhíssimos, como "câmara lenta, ondas cerebrais, cochilo, design arquitetônico, pintura, rock progressivo, matemática, terapia, silêncio, teatro ambiental, computadores, poesia concreta, espaços e galerias de arte, drogas, sexo, performances, comunicação entre surdos-mudos, dança moderna e pós-moderna, autismo, religiões orientais, filmes mudos", etc. etc. etc. Tudo poderia parecer ainda simplesmente curioso se, apenas como exemplo da seriedade do seu trabalho, Wilson não viesse também a trabalhar, em parceria, com pessoas que de outra forma simplesmente não existiriam para a sociedade e também para si mesmas: no caso, autistas, como Christopher Knowles, rapaz que desde muito jovem empenhava-se, autista, em desenvolver relações matemáticas com a linguagem. Esses
experimentos a tal ponto atraíram Wilson que ele não hesitou em realizar parcerias com Knowles, o que dentre outras coisas revelou aquele que até o momento sõ era mais um autista ao mundo das artes plásticas, tornando-o aRtista.
A lista de espetáculos desenvolvidos e tocados por Wilson e equipe incluiriam A Vida e Época de Joseph Stálin, que viria a ser apresentada no Brasil, em plena ditadura, com o nome de A Vida e Época de Dave Clark - para não provocar a onça com vara curta. Dessa obra, centenas de pessoas participariam, inclusive Galizia, ocupando 12 horas no Teatro Municipal em São Paulo, num espetáculo que deixou fortes impressões no autor. Hoje, após diversas fases, dentre elas a retomada da palavra - os espetáculos então eram praticamente mudos, ou quase -, Wilson é um encenador respeitadíssimo, disputado a tapa por profissionais das mais diversas áreas, a ponto de poucos poderem se dar ao luxo hoje de simplesmente não terem sido de alguma influenciados por ele - que seja até pela oposição a ele.
No livro, Galizia embarca nos métodos de Wilson de várias formas: na descrição pormenorizada de um vídeo, chamado Vídeo 50, em que 95 curtas cenas minuciosamente controladas, dispostas umas após as outras, propunham novas formas de entender a imagem e o meio audiovisual; na análise de "Eu estava sentado no meu pátio esse cara apareceu e eu pensei que estava enlouquecendo", obra feita por Wilson em parceria com Knowles, explorando limites da linguagem; no entendimento da importância da dança no trabalho de Wilson; na análise das "peças-diálogo" de Wilson, também fruto da frutífera parceria com Knowles; no entendimento do teatro estático de Wilson, em que os objetos e os vazios são trabalhados a ponto de exibirem sua individualidade em referência ao espaço e tempo circundantes; na rememoração da produção de A Vida e a Época..., apresentada no Brasil; e finalmente no esmiuçamento da obra em termos de movimento, voz, câmara lenta, ritmos, dança e percepção sensorial, nas fases de ensaios (note-se que em Wilson o ensaio compõe o próprio espetáculo, não havendo clara distinção entre ambos), roteiro, apresentação e público. Fecham o livro duas entrevistas com profissionais que trabalharam com Wilson em dois momentos de sua carreira.
O livro de Galizia, como já foi dito, para em 1986, momento em que a análise foi feita. Claro que desde então muitas águas devem haver rolado no teatro e obra de Wilson. Em que medida o livro poderá ser útil a quem deseja se enfronhar em um já clássico contemporâneo, creio que vá depender do afã de quem for lê-lo. Galizia, como Guzik nota, pautava-se muito especialmente por defender, em prol de sua arte, o radicalismo no teatro e nas artes em geral. A que ponto o leitor pode-se sentir envolvido nessa luta, só a leitura poderá dizer.

Nenhum comentário: