O livro é de 2003. E parece que o tempo não passa, ou passou.
Há uma narrativa, sim, nesses 59 capítulos de tamanhos os mais diversos, em que aos poucos, e aos trancos e barrancos, Cardan, o herói ou anti-herói desta história sem começo nem fim, mostra uma fauna em progressão de homens, boys, putas, descoladas, frescas e de amigos, e em que estes, resolvidos, sim, mas a gastar a vida em meio a bebidas, preconceitos e discussões sem fim sobre assuntos que valem e que não valem a mínima pena, abrem as portas a um mundo em que o otimismo não tem lugar e em que a sensação de felicidade vem misturada a um amargor forte e a experiências passadas em meio a bebidas, mesas, ruas, vielas, banheiros, cozinhas, salas apinhadas de tranqueiras e, por que não, até em quedas d'água e sexo anal. Tudo muito temporário, provisório, humano, enfim.
O amigo Reinaldo Moraes, jornalista de antiga cepa, prefacia o livro. Se só o prefácio já mereceria uma resenha, breve, é claro, até para não superar o tamanho do primeiro, o livro ainda mais. Mas pouco seria explicar, se é que dá para explicar, o universo em que a trama, sem eira nem beira, se desenrola aos nossos olhos. Melhor seria dizer que por detrás da trama há muita música, blues e rock'n roll, alguma droga, bastante sexo, alguma pancadaria, bobagens as mais diversas, amores ingratos, desamores ainda mais, histórias em quadrinhos, filmes, robert de niro e por aí vai. Um universo que provoca, pois embora haja quem possa se sentir realmente à vontade reconhecendo aqui e acolá exemplos de mitologia blues e rock, não o mesmo pode acontecer com o comportamento dos personagens, todos aparentemente calcados em pessoas reais. Cardan, pelas semelhanças e tudo o mais, é, como é claro, o próprio Bortolotto. Mas e o Sbórnia, e a Paula, e n outros personagens que pululam aqui e acolá a depender das necessidades prementes desse que parece ser ainda algo menos que um herói sem caráter? Haverá heróis nessa bagaça toda?
A gente se sente guiado pelas mãos do sujeito. Embarcamos em situações inglórias, outras com final feliz, se é que existe realmente final feliz em qualquer história que se preze, e aos poucos sentimos sendo injetados em nós os ingredientes que fazem o universo dessa geração de quadrinhos, blues, sexo, drogas e rock n roll.
Termina cedo, o livrinho. Deixa uma impressão de querer mais, mas, ainda melhor, convida a ser lido e degustado novamente, pois o que de mais se encerra em tão poucas páginas não é bem um conteúdo, mas um estilo de vida expresso em palavras que nos dizem que algo vale, sim, a pena, só não se sabe por que, nem quando, nem a que ponto. O negócio é viver e deixar rolar.
Ah, sim, bagana é - eu não sabia - bituca de cigarro.
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Fratura Exposta, de Cassiano Antico
Ganhei o livro do Cassiano na mesma noite em que nos conhecemos. Estávamos lá no teatro do Marião, bebendo - eu, a minha primeira long neck, acreditem se quiserem -, e fiquei sabendo (na verdade lembrei) do livro dele, com a inconfundível ilustração de capa do Kitagawa, amigo comum. Ele foi pegar no carro, separou para vários amigos e me deu "essas maltraçadas feitas com o coração".
Os textos são curtos e grossos, com o perdão da expressão. Não são literatura, como disse o Bac certa noite, mas são algo que toca. Não nego que já no primeiro texto chorei. E iria chorar várias outras vezes, para deleite do Cassiano. O fato é que ele não perdoa, nem a si nem aos outros, mas como ser humano mortal e ainda por cima humano perdoa, perdoa tudo.
São tocantes os textos em que ele se desmancha em agradecimentos aos parentes. Para um estranho isso pode não ser nada. Afinal, a quem interessa tantas loas para pessoas que sequer conhecemos? Mas a sinceridade por trás das palavras comove. Quase sentimos palpáveis os homenageados, a maioria que já se foram.
Mas da metade para o fim a conversa muda de figura. Começam a aparecer relatos estranhos de quando o Cassiano se drogava e aprontava numa cidade do interior de São Paulo. Não sabemos muito bem o que acontece, os relatos parece que flutuam no ar enquanto o bicho pega. E pega mesmo. Carro batido dos dois lados, pela frente e pela trás, relatos de pico, relatos de excessos que fizeram do Cassiano o que é hoje (?). Explico. O Cassiano é um sujeito intenso. Diz logo a que veio. Se gosta de você, gosta. Se não, esquece de você. Ele diz o que quer. Expressa-se com palavras, gestos, olhares, o corpo, diz claramente o que ele quer. Nem vou dizer o que ele disse da última vez que o vi, mas pude ver que ele disse porque sabia o que iria acontecer. Previu o futuro imediato. Do qual tirou todo proveito.
O livro do Cassiano, como ele mesmo diz, foi lido por gente de todo tipo. Gente de peso gostaria de implantá-lo em cursos do ensino médio. O livro parece ser eficaz em aproximar gerações. A do Cassiano ou mesmo outras. O livro, como o próprio nome diz, é uma fratura exposta, título sugerido pelo Marião, que o prefacia. A orelha coube ao Brum, o guitarrista, outro sujeito de excessos e de vida exposta a torto e a direito sem vergonha de se ser feliz.
Atire no Dramaturgo, de Mário Bortolotto
O Marião editou a primeira coletânea de textos do seu blog há vários anos. Só agora, após ler sua segunda coletânea, me senti atraído pelo livro. Sei lá, eu queria ler mais textos do cara e a coletânea mais recente acabou tão de repente.
Há algo nestes textos mais tosco, mais on the road. Muitos deles tratam dos maus hábitos do protagonista, maus porque ele mesmo os rotula de maus, mas maus também porque realmente é meio foda se deparar com um sujeito que se mete a dar opinião meio bêbado e que se mete em encrencas por - segundo diz - não medir as consequências dos seus atos rasteiros. O Marião diz, nos textos, lamentar que isso assim aconteça, mas ao mesmo tempo diz não se arrepender.
Mas o livro não é só disso. Quase todos os textos, novamente curtos, são memórias. Acontecimentos interessantes, outros apenas curiosos, histórias de amigos, histórias de fracassos, e por aí vai. O livro parece até mais denso que o outro, embora bem menor.
Eu costumo não nutrir muita simpatia por coletâneas. Esse foi um dos motivos por nem mesmo ter comprado as coletâneas de textos do Gerald (o Thomas), de quem gosto muito (como encenador e como pessoa). Mas preciso me render. Na internet os textos parecem meio soltos, sem nada que os una, sem uma espécie de enredo - embora este muitas vezes nem exista mesmo. Em livro, há algo mais substancioso a degustar. Numa espécie de analogia, é como beber uma dose ou a garrafa inteira. Uma dose é legal mas sempre deixa algo a desejar. A garrafa inteira é foda, mas é gostoso, apesar da ressaca posterior.
Conselho, então. Vão lá no teatro Cemitério (Augusta, 384), peçam à Fernanda para dar uma olhada e se gostarem, bom, levem então. Se no final não gostarem, paciência. Mas há conteúdo mais do que suficiente para agradar os mais curiosos nesse cara chamado Marião - que acaba de me dizer estar com preguiça e que por isso não poderei passar a madrugada no bar dele bebendo sem parar.
Os Anos do Furacão, de Mário Bortolotto
Segunda coletânea de textos escritos para o blog do escritor Mário Bortolotto, sendo este também diretor do Grupo Cemitério de Automóveis de teatro, atividade em que é mais conhecido, Os Anos do Furacão (Realejo, Santos) confunde-se com uma bebida, a ser sorvida e degustada aos poucos.
São todos textos curtos. Impressos numa fonte grande. Não dá para saber se são cronológicos. No segundo terço do livro, de repente as páginas tornam-se pretas. São quando muito 20 páginas assim. Essas páginas narram, de um ponto de vista bem particular, como se deu o assalto aos Parlapatões e as agressões de que Mário foi vítima, levando três tiros que quase o matam. Há agradecimentos e o escambau. Nota-se que o acontecimento dividiu águas. Mas o tom continua o mesmo. Nada de lágrimas ou lamentos. O Mário não desiste de assumir o seu lugar privilegiado na avaliação do seu entorno.
No fim, sobram páginas mais recentes. Até o momento em que ele avalia o ano que passou (2012) e imagina o que virá. Mas ao que parece ele não guarda mais ilusões - se é que guardou alguma vez.
Comprei o livro no lançamento e o Mário pôs lá uma dedicatória. "Que os próximos anos nos tragam momentos com tempestades mais amenas". Engraçado, isso. Encontrei o próprio algumas horas depois de haver concluído a leitura. Disse eu que o livro acabou cedo. E foi mesmo. Anotei isso na última página.
O Mário é um cara que ousou trilhar um caminho próprio, acompanhado por amigos (que é o que ele mais preza), sofrendo decepções e ausência de reconhecimento (ele sempre brinca que ninguém vai assistir as peças dele, o que é meia verdade) e opondo-se a critérios de fora como avalistas ou não do seu trabalho. Ele diz que sabia a encrenca em que havia se metido: viver de teatro, fazer o que gosta e consumir o que aprecia. Por consumo, diga-se livros, cds, dvds e, é claro, bebida, muita bebida. De todos os 30 anos em que insiste, conseguiu comprar uma kitchenete no centro de São Paulo e - agora - um teatro (o Teatro Cemitério de Automóveis, na rua Augusta, 384, São Paulo, SP) em parceria com uma amiga, a Dani, aliás, gente boníssima e atriz de primeira.
A quem pensa que ler o livro é apenas adentrar no universo de um teimoso pelo teatro, eu diria que não é bem assim. O Mário não elenca pormenorizadamente as influências que captou durante toda sua trajetória, como se fosse explicar uma e outra coisa, mas estão lá em negrito muitas das pessoas, personalidades, artistas, obras e o escambau que fazem do seu teatro tão gostoso de ser digerido (quanto ao teatro, falo aqui com certa suspeição, dado que assisto as peças do grupo n vezes, mais vezes do que quaisquer outras peças de quaisquer outros grupos. Ele até diz achar estranho. Não é, é que eu gosto. Eu nunca me satisfaço em assistir mais e mais. Sinto até saudade dos personagens, vai entender). Tem lugar para muita gente, indo de Bukovski, Kerouac, Cash e muitos outros. O Mário é um cara que não se gaba. Ele vê o que gosta, fala com quem quer e o que quer. Não acha que a opinião dele vale mais do que qualquer outra, nem acha que outra opinião, de quem quer que seja, valha tanto mais. Ele bebe do blues. Ok. Mas tem certa restrição a ser chamado (por qualquer um) de bluesman (ele adora quando um amigo o chama disso). Ele adora rock. Mas não gosta de muito pretenso rock. Ele assiste outros caras, sim. Mas não comenta com qualquer um. Não se mete a dar opinião a torto e a direito (já foi assim). Ele leu a Ilíada com 12 anos, saca. Difícil achar algo que realmente o surpreenda. O ser humano é humano demais para surpreender quem resolveu trilhar o caminho mais árduo.
Mais é demais. Peguem o livro nas mãos, folheiem-no e avaliem. Se gostarem, tudo bem. Se não, tudo bem também. Palavras do Mário.
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